Friday, July 30, 2010

Arroz, Feijão, Boal e Educação (Português)

1991: eu, professora de escola pública, junto com meu grupo formado por mulheres professoras, recebia o teatrólogo para uma oficina na escola. Ele queria conhecer nosso trabalho e colaborar conosco. Um encontro inesquecível. Um trabalho tão prazeroso que parecia festa. Final da oficina. Hora da merenda!



Hora da merenda é o intervalo para a refeição. No Brasil, nas escolas públicas, as crianças têm refeição diária como complementação alimentar. Refeições simples e nutritivas. Em escolas como aquela onde estávamos, as refeições eram deliciosas.

Nosso dilema: como convidar o teatrólogo internacional, que a gente mal conhecia, para comer merenda, feijão com arroz, no refeitório da escola pública? Feijão preto com arroz é o que há de mais simples e básico e, ao mesmo tempo, de mais típico, especialmente na mesa do carioca. Eva Pereira dos Santos, estrela da peça e diretora da escola, fez o convite: “Boal, vamos comer um feijão amigo?” Ele respondeu com seu sorriso matreiro, aquele aninhado nos cantos da boca, e os olhos arregalados de menino faminto: “Um feijãozinho, quem é louco de recusar?”

Comendo feijão preto de escola pública, conheci um cara competente, dinâmico, sensível, simpático, acessível, simples e complexo. Muito simples e muito complexo. Tive o prazer de trabalhar com ele por quase duas décadas no Centro de Teatro do Oprimido, de onde era diretor artístico, líder político e referência ideológica por 23 anos.

Um cara que sabia apreciar a riqueza de cada momento da vida, que não se deixava seduzir por poder, dinheiro, luxo ou conforto, apesar de saber aproveitá-los bem. Podia usufruir com a mesma intensidade de um encontro internacional ou de uma oficina numa escola pública de subúrbio carioca. Valorizava tanto o prêmio “Luta pela Terra”, que ganhou do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com votação direta dos camponeses de todo o Brasil, quanto a nomeação de Embaixador Mundial do Teatro, oferecida pela UNESCO.

Ele era alguém capaz de apreciar tanto uma boa cachaça quanto um puro malte escocês, tanto um cafezinho fresco numa esquina da Lapa quanto um bom vinho tinto na mesa de casa, um sanduíche de pão com queijo no CTO tanto quanto a boa cozinha francesa. Um cara que sabia a diferença entre as coisas, sabia que era preciso relativizar para entender, para apreciar e para viver. Sabia que as diferenças guardam riquezas e são possibilidades de saber.

Nos últimos tempos, insistia: o infinito se expande universo afora e corpo adentro. É preciso buscar saber do macro e também do micro. E da relação entre ambos.

Um cara que sabia da impossibilidade do saber e apreciava a busca infinita de saber, estando aberto para aprender. Aprendia com o bebê da vizinha, observando seu jeito de entender o mundo. Aprendia com o Hamilton, músico e usuário da saúde mental, tentando compreender por que a música era o melhor remédio para sua cabeça. Aprendia com a Maria, empregada doméstica, como o teatro a fazia se sentir mulher. Aprendia de forma insaciável, escutando, estudando, observando. E quando falava, sempre perguntava: “Vocês estão me entendendo? Está claro o que eu estou tentando dizer?” Não perguntava por perguntar, perguntava para entender.

O que teria levado esse cara àquela escola de subúrbio para trabalhar com professoras que não lhe podiam pagar o táxi? Talvez o fato de elas estarem sendo críticas ao sistema de ensino que integravam e aos princípios arcaicos que serviam a uma pedagogia opressora. Quis cooperar com aquelas professoras porque elas buscavam, de forma coletiva, a transformação de uma realidade injusta e opressiva.

Saiu de casa e foi à escola do subúrbio pelo mesmo motivo que foi ao assentamento de trabalhadores rurais sem terra, à ocupação urbana, ao sindicato, à associação de moradores, à favela, à universidade, ao presídio, ao hospital psiquiátrico e a muitos outros lugares onde havia gente determinada a lutar ética e esteticamente.

Não era homem de caridade. Sua crença era a solidariedade. Cooperar com quem estivesse disposto a lutar e não conformado em esperar a graça divina. Cooperar com quem soubesse que a chave não abre a porta sozinha e é preciso trabalhar. Cooperar com quem estivesse aberto para trocar, aprender, ensinar e multiplicar conhecimentos e estratégias de forma solidária.

Era vaidoso, gostava de ser admirado, mas não de ser endeusado. De ser acompanhado, mas não de ser seguido. De convencer, mas não de impor. Apreciava as vozes de compreensão, mas não tinha paciência de escutar ecos. Era exigente, disciplinado, genioso, genial, terno, emotivo, coerente e comprometido. Simples e complexo. Antigo e moderno. Simultaneamente, de um tempo em que a palavra dita tinha valor de contrato e de um tempo em que tudo que é sólido desmancha no ar. Contemporâneo até o último fio de sua vasta cabeleira.

A homenagem que se pode fazer a esse homem é utilizar seu legado para humanizar a humanidade; para a revolta do/a oprimido/a e não para sua adaptação; para apropriação dos meios de produção cultural e não para o aprisionamento ao consumo; para revelar a estrutura do conflito e não para pacificá-lo na ignorância; para estimular a ação que exige e constrói a mudança e não a espera do favor; para ajudar a abrir os olhos e não para cegá-los com subterfúgios camuflados de solução.

Homenagear Augusto Boal é entender que o Teatro do Oprimido é do/a oprimido/a e deve ser feito pelo/a oprimido/a e para o/a oprimido/a. E não deve, em hipótese alguma, servir, beneficiar ou apoiar o sistema que oprime, explora, controla e manipula, visando à acumulação para poucos/as à custa da espoliação de muitos/as.

Homenagear Boal é tarefa simples e, ao mesmo tempo, complexa.



*Bárbara Santos é socióloga, atriz e Curinga Internacional do Centro de Teatro do Oprimido, onde esteve como Coordenadora Geral de 1994 a 2008, acumulando larga experiência na formação de praticantes do Método. Trabalhou com Augusto Boal até 2009.

3 comments:

  1. Grato, Bárbara, a partilha de seu feijão, de sua emoção, e de sua arte de dizer muito, com pouco...
    lendo, senti Boal morando em ti.
    Grato por trazê-lo a nós.

    afeto
    Nuno

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  2. Sim, escrever é estar. Sigamos! Muito bom te ter aqui.

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  3. Olá! Muito bonito o seu texto, "simples e complexo". Parabéns!

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